A Copa do Mundo sob o ponto de vista do casal

13/6 - Estadão

Entram os times.
- O outro time não vai pôr uniforme?
- O uniforme da Croácia é assim mesmo, Giovanna.
- E pode ?
- Pode, ué. O que a Fifa pode falar ?
- Que quadriculado é difícil. Fica melhor quando é saia.
Começa o jogo. Primeiros toques na bola.
- Quem é este ?
- Este é o Luiz Gustavo.
- É bom ?
- Ótimo. Senão não estaria na copa.
- Ele usa bigode. Que gozado.
Corre aqui, corre acolá, gol contra.
- Ah, não acredito. Tadinho do Maurício.
- Marcelo. O nome do lateral é Marcelo.
- E agora, Brasil ?
- Agora vamos ter que virar. Como Brasil e União Soviética, em 82.
- Você sabe o resultado de 82 ! Isso que é gostar de Copa.
Pequena pausa. Silêncio de cripta.
- Quer que eu faça um bolo ?
O jogo continua.
- Quem é este ?
- Este é o Hulk.
- Ele é bom ?
- Muito bom. Deixa eu ver o jogo.
- Gente, como ele consegue jogar com uma bunda desse tamanho ?
- Sorte da mulher dele, né ?
- A mulher dele está no jogo ?
- Não sei da mulher dele.
- Mas ele é casado ?
- Deve ser, esses caras casam tudo cedo.
- Eu, se fosse a mulher dele, ia querer ir no jogo.
Assunto morre. Dez minutos depois:
- Por que a mulher dele não foi no jogo ?
- Eu não sei se ela foi no jogo.
- Nossa, se você não me levasse no jogo, eu ia ficar puta. Imagina, meu marido na seleção, e não me leva no jogo. Ah, se você não me levasse… E por que não me leva ? É pra poder depois ficar com as Hulquetes ?
- Ela deve estar no jogo.
Jogo segue. Gol do Neymar. Empate. Intervalo.
- E se eu fizesse um bolo ?
- Ah, Giovanna, sei lá.
Pequena pausa de segundos. Ela franze o cenho.
- Você não gosta do meu bolo ?
Recomeça o jogo. Quinze minutos do segundo tempo.
- Como chama a mulher do Hulk ?
- Não tenho ideia.
- Vou ver o Insta pra ver se ela está no jogo. Como ela chama ?
- Não sei. Deixa eu ver o jogo.
- Como assim, não sabe ? Achei que você gostasse de Copa.
Juiz aponta a marca de pênalti.
- Mas não foi pênalti.
- O juiz deu, então foi pênalti.
- Não, não pode. Tem que voltar o lance.
- Amore, isso aqui não é vôlei.
- Que vergonha, ganhar roubado.
Replay do lance.
- Quem é esse que sofreu o pênalti ?
- O Fred.
- Achei gato. Devia jogar na Itália. Quando a Itália joga ?
- Acho que é sábado. Vai ser em Manaus.
- Jura ? Eles vão morrer de calor.
- Azar o deles. Deixa eu ver o Neymar cobrar o pênalti.
- A italianada toda suada. Não posso perder. Quando é o jogo?
- Olha aí no Ipad.
- Você não sabe ? Achei que você gostasse da Copa.
Gol.
- Ah, tadinho do goleiro da Croácia.
- Como assim ? Azar o dele, pô.
- Mas não foi pênalti.
- Vai reclamar pra ONU.
- Grosso.
Pequena pausa silenciosa.
- Quanto tempo falta pra acabar ?
- Uns vinte minutos.
- Quero fazer xixi.
Jogo continua.
- Quem é esse ?
- O Bernard.
- Ele é bom ?
- É bom, senão não estava na Copa.
- Gente, mas ele é muito pequenininho. Quantos anos ele tem ?
- Acho que vinte.
- Eu dava doze. Onde ele joga ?
- Na Ucrânia.
- Ele é casado ?
- Não tenho ideia.
- E a mulher dele, mora com ele na Ucrânia ? Ah, se você fosse jogar na Ucrânia e não me levasse, juro, era divórcio na hora. Mas na hora. Onde já se viu ? Quer ficar sozinho com as Ucranianas, é ?
Pausa. Jogo continua. Dez minutos pra acabar.
- Vou fazer xixi.
- Espera acabar.
- Vou fazer xixi.
Ela sai pro banheiro. Volta. Cinco minutos pra acabar.
- Quer que eu faça um bolo ?
Vai pra cozinha. Grita lá de dentro.
- Laranja ou chocolate ?
Quarenta e seis do segundo tempo. Gol do Brasil. Ela corre da cozinha.
- Quem é esse ?
- Oscar.
- Casado ?
- Acabou de ter filho. A mulher ainda está na maternidade.
- Não acredito. A mulher na maternidade e ele aí, jogando bola.
O jogo acaba. Ela volta pra cozinha. Volta em um minuto com uma cumbuca.
- Então: fiz pipoca.
- Não ia ser bolo ?
- Você não gosta da minha pipoca ?

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DOCIMAR APARECIDA SE ELEGEU

Nem na hipótese mais absurda poderia-se imaginar que Docimar Aparecida, moça míope e manca da perna esquerda, se candidataria ao cargo majoritário da prefeitura de Pato Pequeno ao norte do Paraná. 

Muito menos se pensaria que um dia ela pudesse ser eleita com quase cem por cento dos votos da cidade. 

Pois assim foi.

Deixou o atendimento no posto de gasolina do tio e filiou-se ao partido que o amigo indicou.

Venceu as prévias e com o dinheiro de amigos em troca de favores, fez a campanha perfeita - prometeu, prometeu e se elegeu.

Depois de eleita ela tremeu.

A mãe de Docimar, na boca do povo virou mulher da vida em questão de tempo. Até mesmo os mais próximos não compreenderam o surto. Somente a fidelidade partidária se manteve próxima.

Docimar aprendeu tão logo enriqueceu. Pra se reeleger foi questão de tempo, não com cem por cento os votos, mas com o suficiente. Coisa de demente a ideia de gente decente.

E assim foi.

 

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NAS ONDAS DO RÁDIO

 

Com Cacá Jobin - De segunda à sexta, das 08 às 10h da manhã pela Rádio Nova Iguaçubara - Am 793.6

 

O  tema anuncia o locutor mais do que querido em Iguaçubara, Cacá Jobin. 

Ele abre o programa com o entusiasmo de sempre  “Nas Ondas do Rádio”, o primeiro programa da semana. Os ouvintes aguardam ansiosos desde sexta feira a volta de Cacá.  A audiência às segundas feiras sempre foi maior, pode-se dizer, total em Iguaçubara. Do padre ao açougueiro, da dona-de-casa ao padeiro, todos ouvem com alegria o programa que abala as manhãs da cidade.

 

Música que sobe e desce, ouve-se, então, a voz grave e aveludada do locutor mais amado do planeta, Cacá Jobin.

 

__ Bom dia! Muito bom dia, um lindo dia minhas amigas... um grande dia, meus amigos. Um lindo amanhecer que renova as esperanças... queridas e queridos ouvintes! Gente amada da minha vida, gente amada da minha terra. Mais uma semana começa, mais um dia se inicia e apesar da chuva forte que cai lá fora, tenha certeza que o dia será só de alegria e de muita paz. Porque a alegria e paz é você quem faz...

 

Sobe tema do programa  ... Cacá... Jobin... nos te amamos até o fim...

 

__ Olá meu povo, aqui quem fala é Cacá Joooooobinnnn, (sobe música) o seu amigo até o fim. (música ao fundo sobre e desce). Aquele que ouve as suas aflições, as suas amarguras, os seus desesperos e discute com você alternativas, pois sempre haverá de ter uma para acalentar a alma da amiga e por que não dizer, do amigo também. Todos são meus queeeeeeeridoooossss ouviiiiiiienteeeesssssss!!!!!!!!!

 

Música sobe.   ... Cacá... Jobin...

 

A cidade praticamente pára. Pouco se vê de movimento nas lojas e nos bares. Nas ruas então, é só vento e poeira.

 

__ Alô, bom dia, quem fala?

__ É Jacimara, Cacá.

__ Olá, Jacimara, tudo bem, meu amor?

__ Tudo, Cacá. Bem, quase tudo, né. (risos)

__ Mas por que quase tudo, minha santa?

__ Ah Cacá, to solteira ainda, ele me largou de novo. Mais risos ao fundo.

__ E que mal há nisso, minha fonte de luz? Estar solteira.

__ Ah Cacá, eu amo aquele homem.

__ Mas ele não quis mais nada com você?

__ Querer ele queria, né. Mas depois que enjoou, ele não quis mais nada. Dai eu fiquei na saudade.

__ Entendi, Jacimara. É Jacimara, não é?

__ É.

__ Então, Jacimara, parta pra outra. Um mundo de alegria te espera. Outros cruzarão sua fronteira e você saberá o momento certo quem roubará seu coração para sempre. Afinal, Jacima, a vida é bela, não é?

__ É Cacá. Cacá?!?

__ Oi.

__ Só você mesmo pra me fazer sorrir de novo.

__ Fique com a paz celestial, Jacimara. Lembre-se, ...a vida é bela para quem quer ser bela.

__ Obrigada Cacá!  

Toda feliz ainda pergunta: 

__ Posso mandar um beijo?

__ Pode, meu amor. Mande quantos você quiser.

__ Eu queria mandar um beijo pra minha irmã Dozinete, pro meu irmão Ronerson, pra minha prima, Marlyneide, pra minha mãe, Jurema que faz aniversário e pro namorado dela... não lembro o nome, mas ele sabe quem é. E... ah... um beijo pra todas as minhas amigas da fabrica.

 

Sobe som. Música tema.

 

__ Bom dia, quem fala?

__ Eeeeeeeeeeee!!!! Cacáááááá eu te amuuuuu, To feliz em poder falar com você Cacá. Eu ligo sempre, mas nunca consigo.

__ Oi querida, obrigado. Cacá Jobin é que está feliz até o fim. (Sobe música)

__ Eeeeeeeeeeee!!!!

__ Diz pra mim meu bem, por que você está tão triste assim?

__ Ah Cacá, sabe o que é? Eu acho que to grávida, faz quatro meses que não vem... mas meu pai não sabe ainda. Minha mãe não contou pra ele porque tá com medo da reação dele. Ele é um homem muito violento, Cacá. 

Ouve-se o choro da ouvinte. Música para momentos tristes sobe de leve.

__ Mas meu amor, o que foi que você fez meu bem, conta um pouco para mim também.

__ Ah Cacá, sabe como é, né. (risos) O Nico é um rapaz muito lindo e gostoso, eu amo muito ele, mas não sei se ele gosta de mim de verdade, o tanto eu gosto dele. To sofrendo muito Cacá... me ajuda?

Música triste sobe e sai rapidamente.

__ Claro meu bem, mas você mesma devia contar para o seu pai...

__ Não, Cacá, ele vai me matar.

__ Não, talvez não. Acredite, você é mais capaz do que pensa sobre si mesma. Olhe para o céu veja o quanto ele é azul... azul da cor do mar...

__ Tá chovendo aqui, Cacá...

__ Aqui também, meu bem. Mas acima das nuvens negras, das tempestades do céu, existe um horizonte onde a gente possa viver em paz... Sonho com flocos de nuvens brancas que vão dirigir os seus caminhos.

__ Mas e... se ele me matar, Cacá, o que faço? Assim barriguda, grávida como estou?

__ Nada, meu anjo. Deixe o mundo girar... você vai se encontrar, acredite em você mesma, mais do que tudo na vida.

__ Cacá... eu é que te amo mais que tudo na vida. Você bem sabe como acalmar a gente, deixar a gente feliz.

__ É por isso que eu estou aqui... Cacá Jooooobimmmmm...

 

Sobe a música tema.

 

__ Oiii... quem fala?

__ É Dirce.

__ Dirce da onde?

__ Daqui, Vila Emanoel.

__ Tudo bem com você, Dirce.

__ Não, não está nada bem comigo.

__ Conte pra mim, Dirce, não quero ver você triste assim.

__ Olhe Cacá.. eu já fiz de tudo, já fui na igreja, já fui na reza brava, no terreiro, em tudo que é lugar... mas nada de sair esta vontade sem limites de beber, Cacá.

__ Ah! Que pena Dirce, você bebe, então?

__ Bebo, Cacá.

Mas o que você bebe, Dirce, fala pra mim...

__ Ah eu bebo o que vem pela frente. Até mijo já bebi...

 

Sobe som. Música triste e rapidamente substituída pela música tema do programa.

 

__ Queeeeeeemmmm falaaaaa? Bem-vinda querida!

__ Oi Cacá... que bom falar com você... é Sonia.

__ Meu bem, meu bem, Sonia, a gente volta a se falar daqui a pouquinho, trinta segundinhos só, agora nós vamos dar espaço aos nossos parceiros... aos nossos anunciantes...

 

Música tema.

 

Iguaçubara volta ao normal depois do programa. Vida pacata, sem graça, sem riscos, até o dia seguinte.

 

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A Carteira

 

Por: Machado de Assis

 

     …De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:

     - Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.

     - É verdade, concordou Honório envergonhado.

     Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma voragem.

      – Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C…, advogado e familiar da casa.

     - Agora vou, mentiu o Honório.

     A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, em que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.

     D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.

     Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.

     - Nada, nada.

     Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a más horas.

     A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua. da Assembléia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando.

 Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, – enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo.

     Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la.

     Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo… Honório teve pena de não crer nos anjos… Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal.

     ”Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar-me do dinheiro,” pensou ele.

     Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?… Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele.

     A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dous empurrões, mas ele resistiu.

     ”Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer.”

     Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado, e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa.

     - Nada.

     - Nada?

     - Por quê?

     - Mete a mão no bolso; não te falta nada?

     - Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou?

     - Achei-a eu, disse Honório entregando-lha.

   Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas.

     - Mas conheceste-a?

     - Não; achei os teus bilhetes de visita.

     Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.

Machado de Assis, romancista, contista, cronista, poeta. Nasceu e viveu no Rio de Janeiro. É considerado por muitos como o melhor escritor Brasileiro de todos os tempos.

 

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Este conto foi postado em 18/11/13

 

O PLANO - Um conto ultra curto

 

Suicidou a mulher quando soube que ela o traia com o vizinho e em seguida assassinou-se.

 

Sequência minuciosamente elaborada pelo autor do crime sem que jamais alguém pudesse descobrir a verdade. 

 

LOCAL E DATA - Deitados na cama do casal. Madrugada de um domingo para segunda - Noite chuvosa e com muitos trovões. 

 

1 - Um tiro na boca da infiel enquanto ela dormia.

2 - Limpar as digitais no revólver.

3 - Colocar a arma na mão esquerda dela. (era canhota)

4 - Aproximar-se e apertar o dedo acionando o gatilho em sua direção.

5 - Ambos morrem na hora.

6 - Ela leva a fama.

7 - O vizinho? …ele se vira. 

Uma carta reveladora foi encontrada na mão direita da assassina suicida. Nela a mulher dizia-se portadora de um vírus vaginal infeccioso, mortal, restando-lhe dar cabo das vidas do marido e de si própria.

  

O vizinho suicidou-se na tarde daquela segunda feira e ninguém soube o motivo.

 

Baseado em fatos reais (ou irreais).

 

 

 

QUE DIABO É ISSO?

Publicado em Janeiro de 2012

 

Seu Aristides não se conforma. De tanto que os amigos encheram o saco, trocou sua velha máquina de escrever por um computador. Um desses que chamam de lap top, todo moderninho. Disseram que com o novo equipamento ele poderia trabalhar mais fácil e tudo seria mais rápido. Os documentos do escritório de contabilidade, seu primeiro e único emprego desde os tempos em que seu pai lhe ensinou o ofício, ficariam mais adequados e melhor arquivados - Digitalmente! 

A nova máquina tinha uma infinidade de tipos de letras, tamanhos, cores e outros tantos recursos. Além disso, não precisaria mais do papel carbono, as malditas folhas meio plastificadas com tinta preta estampada no verso que lhe sujavam as mãos e difíceis de serem encontradas nas papelarias - somente por encomenda. 

Com uma impressora que deveria também ser adquirida, faria quantas cópias quisesse. E melhor, cópias coloridas, se precisasse. Bastaria, depois de tudo pronto, apertar um botãozinho chamado print e elas sairiam como num passe de mágica, na quantidade que quisesse.

Além disso tudo o computador conectado a um negócio chamado Internet, os documentos seriam enviados aos clientes numa velocidade muito 

mais rápida que um carteiro ou que um motoboy. Para tanto deveria criar um email - Isso é fundamental, lhe disseram. Ainda precisaria ter a 

Banda Larga, nome horrível, ele pensava. Sem ela a velocidade não seria tão rápida assim. 

Com isso tudo sobraria mais tempo para tomar a cachacinha no Bar do Tadeu e jogar conversa fora com os amigos e ainda teria oportunidade para 

outras coisas mais divertidas. 

Fazia tempo que seu Aristides não tinha na vida outra coisa se não, trabalhar. Seus dedos já meio trêmulos, encontravam dificuldades com as 

teclas pesadas da antiga Remington. De fato convenceu-se e decidido foi até a loja mais próxima. Carregou no bolso o anúncio do jornal com a  

oferta de 12 parcelas iguais e sem juros.

Enfim, em casa onde é também seu escritório, com duas ou três caixas na mão, pôs-se a revirar os volumes mostrando com orgulho a maravilha 

adquirida, escondendo certa insegurança à sua esposa, dona Esperança. Esta, pouco entendeu do que se tratava e perguntava pra que serviria 

aquilo tudo.

Abertas as caixas, Seu Aristides olhou para ele instigado - viu o lindo computador preto todo brilhante. Sentiu o peso nas mãos e comparou 

imediatamente ao da máquina de escrever. Levantou a tampa da tela com a curiosidade de um macaco. Observava daqui, dali e não tinha a menor 

ideia de como começar fazer aquele treco funcionar. Como se liga esse troço? 

Achou estranho não ter uma alavanca do lado esquerdo para rodar a folha. Deveria estar escondida, pensou. Por onde se enfiam os papéis? 

perguntava a si próprio duvidando ainda da eficiência anunciada. 

Claro que aquele punhado de livrinhos e os trecos metalizados que mais pareciam disquinhos de músicas, embrulhados em envelopes plásticos com 

um durex diferente, cheios de recomendações e escritos em línguas estranhas - deveria ser, inglês, espanhol, japonês, além do português é claro, 

poderiam ajudá-lo. Leu todos com atenção, levou dois dias fazendo isso. Entretido, irritado, não compreendendo quase nada do que lia.

Já no terceiro dia de estudo profundo, aborrecido com as tentativas e os insucessos, bastante desgostoso com a traquitana dos infernos, o seu 

neto, Arizinho, de 14 anos veio ao seu socorro. O garoto, craque nessas coisas, acabou fazendo todo o serviço. Deu as primeiras lições ao avô, ligou o computador, conectou a Internet, fez as configurações necessárias, instalou a impressora e criou um primeiro email para o avô. A seu pedido 

ficou assim: aristidesdesouzaesilva@escritoriodecontabilidade.com.br

Desativado este, posteriormente criou um outro: ari@ec.com

Quem diria heim! Seu Aristides agora passa mais tempo no Bar do Tadeu que no próprio escritório. De lá, ele posta comentários até no blog Blog 

que criou.

Para os clientes ele encerra os emails com um Att e para Dona Esperança, que também aderiu ao Facebook, ele envia do bar mensagens com 

sorrisinhos e piscadinhas marotas -  ;)

Ela responde aos cortejos do marido com singelos:    :)

E tudo vai bem.

 

 

 

 

 

VELAS DOS 90

Publicado em 16/2/13 e reeditado em 04.3.14

 

O homem vestindo um casaco escuro comprido caminhava pelo parque numa manhã fria de um início de primavera. 

 

A fragrância, o colorido e a extensão das flores perfiladamente postas nos jardins, faziam com que ele saboreasse o momento com felicidade singular. Sentia-se leve naquela manhã.

 

Apesar dos 89 anos bem vividos, ninguém dava a ele mais que 63. Alto, esguio, de passos firmes, via-se nele o perfil de um homem charmoso e de personalidade forte. Um quê de bondade sábia cobria-lhe o semblante.

 

Pelas ruelas arborizadas quis o destino que ele cruzasse com uma jovem de idade não mais que 21 anos e que também pareceu-lhe estar se deleitando com a manhã bucólica.

Uma moreninha de jeito tímido, de olhos levemente azulados e corpo nitidamente tenro. Os cabelos escuros, lisos e compridos insistiam em se esparramar pelos ombros sensualmente descobertos.

 

Como num cortejo espontâneo, lembrando os bons e velhos tempos, ele sorrio para ela. É provável que o elegante cavalheiro naquele momento, embriagou-se de lembranças tenazes e estivesse rememorando a juventude há muito esquecida.

 

Constatando o impensável, o curioso interesse do elegante cavalheiro, ela retribuiu o galanteio com um sorriso de moça do interior. Instantaneamente seu coração disparou e a ele, ela deu mais atenção do que daria uma moça de família comum.

 

Foi o suficiente para ambos. Explodiu naqueles instante um incontrolável amor. Um do tipo profundo, que alcança e despedaça as vísceras, daqueles que quebram barreiras, tabus e transpõe qualquer dificuldade. Um que jamais compreenderiam e nem tampouco aceitariam.  

 

Casaram-se dois meses depois sem contar com a aprovação de ninguém, nem dos familiares e nem dos amigos.

 

Mudaram-se para uma cidade distante para lá serem felizes.

 

Viveram o amor eterno durante nove meses e quatro dias até um repentino suspiro avassalador, exatamente quando ele soprava as velas na comemoração dos seus 90 anos.

 

Ela, dois meses e meio depois, não suportando a solidão que se evidenciava, voltou para a casa dos pais. Viuva arrependida, mas com os bolsos cheios de dinheiro.

UM LUGAR CHAMADO PIZZA

NOTA DO AUTOR: A história é baseada em fatos reais. Ocorreu alguma coisa parecida em algum lugar que não existe mais, uma aldeia que ficava no sul da Itália ou da Polônia ou talvez da Dinamarca. Ou mesmo na Espanha ou da Malásia. Nem me lembro direito onde ficava Pizza, só sei que essa mentira se garante e se revela a mais pura das verdades verdadeiras.

O menino Paschoal pela madrugada acordou de um pesadelo. Assustado chamou a mãe que não foi ao seu encontro. Acostumada, ouviu mais uma vez o filho gritando, que tinha sonhado o tal sonho-sonhado, o mal-acabado, o mal-assombrado. Coisa do tinhoso, que só poderia ser.

 

Ela sabia bem o que todas as noites o menino via no sonho-sonhado - corpos esparramados pelas ruas, praças e avenidas. Caídos, jogados, estirados, retorcidos. Uns mais e menos decompostos, outros mais e menos fedorentos. Corpos de gente que um dia foi gente como a gente. De alguns sabia até os nomes.

A maioria de barriga gorda, flácida ou endurecida. As papadas dos pescoços eram enormes, contavam-se as banhas como pneus nas entranhas.

 

No sonho o filho dizia que caminhava por entre os corpos nus e por outros ainda vestidos com fragmentos do que um dia mostraram-se reluzentes ternos de linho inglês. Pretos, azuis ou cinzas. Escuros e mais claros. As gravatas, estas sim, todas muito coloridas, estampadas ou lisas.

 

Restos de carne humana misturavam-se ao lixo acumulado por todo canto. Corriam dele e para ele os ratos, as baratas e os lobos. O odor era insuportável.

 

No sonho sonhado a peste chegou não se sabe de onde e se fez alcançar somente humanos - em cheio, na mosca, bem na raiz da questão. 

Apodreciam ainda vivos até a morte que ardia lenta, muito cruel, bem vingativa. Aqui, ali e em todo lugar.

 

Tudo seguia tão bem quando de repente a nuvem transformou o que havia de mais verde abacate para um cinza-chumbo de tom totalmente sem graça. 

As pessoas viviam felizes até então, elas acreditavam na vida que levavam. Dentro dos castelos ou fora deles, nas aldeias e nas cercanias. 

Nesse lugar chamado Pizza uns comiam e outros deixavam-se ser comidos, a felicidade e a resignação se mantinham equilibradas pelas ilusões e pelo medo.

 

Esse era o sonho.

 

Anos depois Pascoal terminou o tratamento com o médico de cabeça. 

Milagrosamente o doutor fez desaparecer por completo a tormenta que perseguia o sossego do bastardo. Então ele pôde seguir a vida no seminário, pois a mãe queria vê-lo padre de qualquer jeito, um do tipo que só se veste de batinas pretas, o tempo todo. 

 

Pizza ganhou um padreco novo em menos de uma década. Agora a aldeia via sumir o monsenhor que há anos dava em cima da mãe do menino que sonhava o sonhado-sonhado, do moleque que era assombrado pela coisa do capeta, do tinhoso, do zebedeu.